terça-feira, 27 de setembro de 2011

Taranis a Dor

A verde colina doía sob seus pés, o ar não lhe agradava e a dor não era sentida, era vivida.
Morava no poço abandonado perto da árvore mais velha num dos extremos da planície, onde a mesma começava a virar vale. A chuva batia quase toda semana, um ritual ao qual ele estava acostumado. Se começava na madrugada ele podia ficar um pouco debaixo dela, até o sol rebentar o horizonte e subir sem clemência, obrigando-o a descer ao seu poço e andar pelo túnel até a obscura câmara a qual estava fadado, passar o resto da existência em luto.
Desesperava, não pensava, agoniava, não chorava, chacoalhava, não tremia, em seu frio ninho amaldiçoado nas entranhas da terra ele tentava gritar mas tudo o que se ouvia era o som da madeira de sua cabeça sendo atritada contra a de seus punhos, um estalido surdo e seco. Se contorcia em desespero no escuro eterno de seu viver, sem olhos, sem boca, sem ouvidos, sem tato, sem humanidade. Com alma.
Variava em se espernear, debater e se sacudir em agonia. As vezes ficava quieto, chorando com o espírito, a tristeza se pudesse já teria corroído toda a madeira em pó, mas tudo o que se é por esse jeito de se existir é dor e inexistência.
Maldição.
Ele não queria ter feito aquilo. Porque não o ouviram? Porque saíram amarrando-o e levando-o sem sequer pararem pra pensar no que estavam fazendo?
Ou será que pensaram?
Foi um acidente. Porque mataria o amor de sua vida? Porque? Não havia perdão.
Ninguém viu mas todos sabiam, ele tinha batido nela e jogado-a do penhasco depois dela recusar se deitar com ele. Como assim? Qual é a razão? Porque? Ele amava-a, amava-a e nada mais, nada mais, só queria ser feliz. Ela queria se divertir. Se sentou na cerca que dava para o penhasco e antes que ele pudesse agarrá-la para puxar de volta ela perdeu equilíbrio e caiu. Não deram tempo dele se jogar atrás dela, não deram tempo dele se sepultar nas pedras junto a ela. Tão somente viram as cena de longe e correram a fazer justiça.
Justiça de maldição.
Acorrentaram seus braços, sua carne, viva, ele em gritos pelo nome de sua amada. Não hesitaram em levá-lo ao feiticeiro corrompido que só queria uma mínima desculpa para se alimentar de carne jovem, em troca de não matar todos do maldito vilarejo de uma vez só.
Bateram a porta do velho chacal e jogaram-no para dentro, gritando impropérios para mascarar o verdadeiro motivo. Era inacreditável como se podia ser justo tão rapidamente.
Trancado dentro da toca do feiticeiro, acorrentado, não pode fazer nada a não ser assistir o velho esquadrinhar livros e livros, gritar em fúria e balançar a cabeça em desaprovamento. Por fim depois de horas o velho havia talhado um corpo em carvalho e começava a marcar sinais na madeira. Com o sangue do acorrentado. Furos na carne e marcas na madeira.
Quanto mais ele furava da carne e mais do sangue saia de seu corpo e tatuava o carvalho sob os gemidos e grunhidos do feiticeiro, mais ele sentia-se fora de si mesmo e mais dentro da madeira. Então começou, depois de sangrar em pontos específicos o velho começou a se alimentar da carne, dos nervos, dos tecidos, dos ossos, de todo o corpo do jovem amaldiçoado.
A dor, a agonia, incomensurável. Ele deveria ter morrido. Deveria. Não morreu. A dor não cessou até que o último pedaço de seu corpo fosse ingerido pelo velho. Ele estava vivo. Não dentro do velho, não no sangue espalhado no chão, não solto no ar. Ele simplesmente estava vivo. Na madeira.
Sem comandar a nova casca que ocupava ele foi guiado sob a alta noite até o poço onde agora reside.
Condenado por ritos a não sair sob a luz do sol e não se afastar demais do poço e da velha árvore ele passou séculos em madeira e tristeza.

Ele ainda sentia seu corpo de carne, sentia como se sente uma ferida pútrida, impossível de se acostumar. Sentia isso no fundo da alma, sentia, no mais, só a agonia.
Injustiçado, amaldiçoado, séculos sob essa condenação sem volta ele sabia desde começo um jeito de se livrar disso tudo.
Toda a chuva noturna era captada pelo seu corpo de carvalho que se corroía aos poucos, um suicídio secular, lento, em luto, em escuridão.
Agora era só a madeira apodrecida e sua dor até o fim da matéria e a consumação da alma.

Nenhum comentário:

Postar um comentário