sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Let's Talk About Death [2] - Quando se morre

A plena luz do dia clareava a estreita rua com casas de tijolo e madeira, cortava a poeira e iluminava tudo e mais um pouco.
Apenas duas almas vivas na rua, apesar das dez horas da manhã, todos ainda meio acordando no domingo ateu. Ao que parece estão tendo uma acalorada discussão. Xingamentos, gritos, ameaças.
Uma enorme nuvem rola até abaixo do Sol e a rua se escurece. Um dos homens pega uma madeira e como o coração e os músculos em riste ele acerta a cabeça do outro. Pedaços de madeira podre voam pelo ar cintilando na luz fraca. O sangue acompanha a madeira e tudo voa em dança pelos ares enquanto um buraco se abre no crânio do homem.
Sem pensar muito e quase desmaiando, meio sem acreditar no que fez, o outro homem solta a madeira quebrada no chão e corre com sangue no peito e na cabeça, tentando limpar e gritando umas coisas que nem ele entendia.
Alguém olha pela janela e grita.
"Meu Deus!"
Alguém corre em socorro do homem caído, uma senhora. Senta ao lado dele e tenta re-animá-lo. O sangue corre solto pelo chão de terra batida.

Homem #1, o caído.
"tudo turvo aqui, tudo avermelhado, quente caindo em meus olhos. dói demais, lateja demais, o que, porque, quero me mexer, quero levantar. vou vomitar. não é vômito. é mais sangue. cuspindo. não controlo... tudo turvo e quente demais... esse chão formigando minhas costas... meu corpo todo formiga... meus olhos... minha cabeça tá quente e fria... tem alguém mexendo em mim. senhora me ajuda por favor. me levanta. devolve meu sangue. quem são vocês. pra onde ele foi. que gosto horrível. que inferno. quero chorar. quero matar ele. sangue. sangue demais. chorar. tu é homem caralho. porra que merda. passou o calor. tá mais frio. tá doendo muito. senhora. desculpa, não queria cuspir na senhora. inferno me solta. to levantando. sai de perto todo mundo. a caralho que dor. deitei de novo. levanta porra."

Ao redor do homem uma turba de curiosos observavam o sangue rolar pelo chão, uns aterrorizados, outros solidários, outros em escárnio, outros com não mais que sete anos de idade. Todos abutres, no fim das contas, atraídos pelo imã inevitável da morte, aliás, do limite entre morte e vida. O homem estava ali, mas poderia ir embora a qualquer momento, uma viagem, todos querem se despedir, ou dar boas-vindas, ou só olhar mesmo. Uma mulher grita em prantos e choro, não quer que seu filho vá. A nuvem ainda está lá, tudo enegrecido e abafado, não quente, não frio, só abafado. É verídico. Umas crianças, uns velhos, uns jovens. Uns ligam para a ambulância, outros para a polícia. Uns passam pela rua, outros param e olham. Só olham. Não podem parar. A senhora que ajuda o homem está até os cotovelos suja de sangue, não treme, não se assusta, só ajuda. Colocam uma toalha atrás da cabeça do homem. De branca a toalha se avermelha por completo em segundos. O homem está de bermudas e chinelos, o sangue que ele cospe cai direto no peito. Alguns espasmos. Uma epilepsia. Quando termina alguém grita que ele morreu, e a mãe desmaia nos braços de uma amiga em choro.
No exato momento em que o homem caiu e o outro correu embora, quando passou pela saída da rua foi logo em seguida perseguido por uns homens que perceberam a situação, ainda assim ele tinha uma vantagem de metros.

Homem #2, o de pé.
"filho da puta filho da puta filho da puta corre corre caralho corre CARALHO CORRE!!! tão atrás de mim. esse sangue, puta que pariu. me sujou. me acusou. duas vezes. não mandei ele fazer merda. não mandei xingar minha mulher. filho da puta. corre porra. caralho tão atrás de mim. é muita gente. socorro meu Deus por favor. não chora imbecil só corre. to cansando. caralho tão chegando perto. que porra é essa uma porra duma PEDRA CARALHO É SANGUE MINHA ORELHA PORRA CORRE CORRE TÃO CHEGANDO PERTO SOCORRO. ninguém vai fazer nada, vão deixar me perseguirem e me atacarem. chamem a droga da polícia, me prendam, me ajudem. não me peguem por favor eu quero descansar."

Corre com todo seu espírito e alma, seu coração ainda em riste porém agora gélido, o sangue que corre pelos seus vasos é amargo e gelado, a cabeça vai explodir, correm atrás dele e ele no limite da resistência. Voa uma pedra enorme e cepa sua orelha, cambaleia e perde velocidade. Tropeça tonto e se aproximam dele. Milagrosamente se recompõe e corre de novo. Bufando como um louco, o medo crescente e o silêncio dos homens que simplesmente o perseguem transforma tudo no cenário mais horrível que ele podia imaginar.

Na rua.

A polícia chega quase uma hora depois para recolher testemunhas e observar a situação. O homem se retorce e respira variadamente rápido e devagar-quase-parando. A ambulância chega. Os para-médicos correm ao socorro e a senhora que prestava ajuda não sai do lugar. Curativos e compressões de emergência são reforçadas. Balançam o homem para que ele se mantenha acordado e o colocam na maca. Levam até a ambulância e a vida ainda joga com a morte pela alma do homem.
Em minutos a turba se dispersa, a rua esvazia. A nuvem vai embora.Tudo se ilumina mais uma vez e o Sol começa seu trabalho em secar o sangue do chão. Logo a vida volta ao normal e risos são ouvidos, vozes de crianças e vozes baixas. Tudo flui com calma e o meio dia vem chegando. Alguém quase tem um ataque cardíaco de nervosismo e pressão. Talvez uma mãe. Talvez.

Talvez um homem que corre de uma fera invencível e tropeça.

A justiça dos homens se esbalda e o homem grita por Deus.

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