domingo, 1 de maio de 2011

Pra esperar o Sol (Melissa)

O som do atrito da borracha dos pneus com o asfalto abafava um pouco o som da corrente rodando na coroa e dos aros girando, e aquela musiquinha constante que sua bicicleta fazia com seus rangidos, estalos e silvos eram a harmonia perfeita pra suas feições. Era como se cada barulho se tornasse uma nota magicamente composta para cada mínimo canto de sua existência, dos dedos aos claros cabelos.
As finas formas de sua fracamente avermelhada bicicleta dialogavam com seu corpo descrito perfeccionistamente por anjos ou demônios. Os chinelos de palha no final de suas brancas e bronzeadas pernas, até seu pequeno short jeans, claro e surrado. O quadril que armazenava mil paixões e infinitas fantasias. A camisa de renda para cobrir o bikini amarelo de sua preferência. Seus cabelos navegando em nuâncias amarelo-palha e laranja-outono, graças as luzes matutinas levemente nubladas, seu rosto com traços universalmente admiráveis, seus olhos ocultos por uns imensos ray-ban que parecem ter sido feitos para ela. Até os seus lábios, contraídos em um estranho desgosto insatisfeito estão bem. Tudo bem, tudo bem, o mesmo trajeto sinuoso e arvorado que ela usava pra sentir a maresia aos poucos sem perder aquele gosto de surpresa que a praia repentina nos causa, a mesma perfeição.
Tudo certo e algo fora dos trilhos.
De sua casa até se atingir o asfalto era necessário descer por uma ladeira cheia de histórias. Histórias? Podem-se contar histórias sobre ela. No auge de sua forma, no auge de seu brilho enquanto estrela do mar, nada é inatingível, tudo é tocável e destrutível à suas mãos, sua vontade é destino e a razão sua súdita. Por mais que todos quisessem ver por detrás de sua máscara, ela não tinha, era o que era por excelência. Não admitia ter quebrado o coração, e era verdade. Não se vangloriava por ter quebrado dezenas, mas quebrara. Poucos discordavam de sua verdade e sua realeza era incontestável... Mas todos nós deslizamos.
Ela nunca se dera ao luxo de uma paixão que dominasse ela, que nenhum homem burro a usa-se, mas nada que um pouco de álcool no sangue não resolva, não há inibição que resista, se há vontade também está lá.
Todos deslizamos.
Assim como os pneus finalmente ao acharem reta, deslizam pela ciclovia. O mar interminável em seu horizonte laranja fusco de Sol que não quer nascer.
Ou quer?
Bem, tudo era possível e tudo era mediado por sua consciência, era inteligente em sua malícia, mas por uma única vez que deixou se guiar um pouco a mais por sua vontade do que por sua razão... Talvez a única vez em que realmente sentiu de verdade.
A ciclovia a agrada e a essa hora do dia ela tem ela só para ela, praticamente, excetuando alguns madrugadores. Novamente aquela sensação estranha, como se o mundo saísse dos trilhos e o universo se desfize-se, os olhos reviram e a bicicleta cambaleia, mas ela volta ao ritmo natural.
Se Vênus viesse a nós, não acharia forma melhor do que através da existência de Melissa para se manifestar. Melissa, de passado perfeito mas de presente e futuro incertos. Ela morre e nasce por dentro ao mesmo tempo.
E vai freiando lentamente, e desce da surrada bicicleta clássica e caminha até um banquinho ao lado de um quiosque, segura a bicicleta com uma mão e olha o horizonte segurando o Sol.
Outra vez o universo desmorona e o seu equilíbrio vai junto. A bicicleta cai fazendo barulho.
Com a coluna encurvada, abaixada e com a mente longe, ela vai voltando a estabilidade natural, tremendo. As mãos no rosto desfigurado por rios de lágrimas e o desespero crescente.
A inevitável sensação (psicológica?) de estar morrendo para dar a vida a outra pessoa, dentro dela, fruto de seu deslize e inocente perante a sua falta.
Melissa mãe só quer pensar em que fazer, dar vida e morrer (morrer?) ou matar(matar?) e viver.
O Sol vai subindo e iluminando sua amarelada cabeça, mas não seus pensamentos, ela desespera e soluça, e o frio está no ar, junto com o Sol, e a bicicleta se calou.

4 comentários:

  1. Tu escreve com tanta paixão, tanto amor que envolve cada palavra, e vai envolvendo o leitor. Sou apaixonada pelos seus textos. Não tem como não ficar vidrada!

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  2. Droga, o título poderia ser Jéssica, nunca me identifiquei tanto... =\ *-*

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  3. "Morrer e viver, dentro de si mesmo como o infinito nascer e por do sol, ahhh... o viver... as vezes doce como o mais puro mel e as vezes amargo como o fél."

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