domingo, 1 de maio de 2011

Azul escuro

Bucolicamente as quatro e quarenta e cinco da tarde, as peças do arrastado jogo de xadrez se movimentam com solenidade, em seus longos intervalos, e o cd da Legião Urbana toca seus sucessos.

Os cabelos de ambos crescem rápido demais, e eles pensam demais, e fazem muito pouco, e se vêem menos ainda, ali estava um raro momento. Histórias atrasadas e aquela luz que entrava pela janela e pelas cortinas até se jogar em cima deles, no jogo e no chão, sem querer parar de se mexer, e eles iam envelhecendo e ela ia se arrastando, pra dar mais uma volta, alimentar outras vidas e acabar com outras.


Mas havia solenidade em tudo, nas barbas mal feitas e nos sonhos impossíveis, no clima ameno e no outono. Tudo e nada girava em espiral harmoniosa, e não. Não era quente, mas o frio não perturbava, o tempo era deles e eles eram do tempo, podiam tão somente olhar ele passando e tentar correr atrás, mas preguiçosos como eram...

Xeque!

Revanche!

As peças mudam de lado em analogia as horas mudadas e em relação a vida de cada um. E em analogia ao cd também trocado, agora um dos Los Hermanos. O vencedor ainda ri, mas logo para, talvez por se lembrar que é mais velho e tem menos tempo, mas não perde de todo o sorriso no rosto, ainda é jovem. E ganhou. Repetição e perfeição não se encaixão em uma vida de oportunidades únicas, eles não sabiam se deviam esperar as oportunidades ou se elas deveriam esperar por eles. Por comodidade e soberba escolhiam a segunda opção, e eram cinco e vinte da tarde.

Algum questionamento existencial que logo irrita ambos e descem pra pegar café, e o quarto fica vazio, e as peças imóveis, e as sombras dançam conforme a música do Sol, o cd canta sozinho. E tudo solene escadas abaixo, cada segundo calculado no ábaco universal da perfeição indesejada .
Dois copos de requeijão se enchendo de café aos poucos, açucar demais ou açucar de menos, cada um faça o seu, em analogia a armadura solitário do egoísmo. Mais uma discussão existencial e estresse. Risos, escadas acima, os pés pisam no tapete com uma ínfima porção de luz em sua superfície, a poeira fria sobe e deita nas peças preto e brancas, nada mais solene, ó morte!

Sentados novamente as peças se movem mais estressadamente, efeito do café sobre seus senhores.

Xeque!

Revanche!

O antes derrotado agora ganha e ri duas vezes mais, por ter ganho e por ser jovem, por lembrar e seus amores prometidos e ver que não podia haver algo de ruim em um mundo tão bonito. Vitória, mas o vencedor derrotado quer uma terceira partida, a decisiva, vamos ver quem ganha.

O sol vai se retirando lentamente, sem perder sequer um raio de luz de sua realeza, mas deixando de iluminar a existência de ambos, tudo vai escurecendo bem devagar, mas ainda claro.
Por fim coloca-se um cd da carreira solo do Renato Russo e eram cinco e quarenta da tarde.
A solenidade não morre.
E o mais jovem, no começo cheio da graça da vitória recente, joga rápido e põe tudo a perder, o mais velho joga calculadamente mas não tem muito foco. O jovem agora se apressa pois mora longe e está escurecendo, são trinta minutos de caminhada e o caminho é solitário, em analogia a vida de ambos. Jogadas apressadas e uma desistência disfarçada fazem do mais velho Bicampeão daquela tarde infinita.

O jovem recolhe três livros emprestados, dá um abraço em seu amigo mais velho tão jovem quanto ele, e vai pela estrada, como sol se deitando, ato final.


Tudo solene.

3 comentários:

  1. "...o tempo era deles e eles eram do tempo, podiam tão somente olhar ele passando e tentar correr atrás, mas preguiçosos como eram..." ~ Droga, vc é tão bão, velho!

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