quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Memmingen

A imensa e áurea lua já havia subido pelo horizonte, atravessado o rio Iller e atingido o cimo do céu, parada em cima da praça central da cidadela de Memmingen, jogando seus raios brancos como leite sob todos e tudo que apreciavam a fanfarra de bardos no entorno da fonte, que logo se dirigiu para o meio da praça, se juntando numa dança intensa e animalesca com algumas ciganas que ali batiam seus tamborins e estalavam suas castanholas.
O frenezi musical era rodeado de palmas batidas em um ritmo vicioso e repetitivo, o flautista não mais podia distanciar os lábios do seu instrumento e suas pernas não mais podiam parar de se mexer desordenadamente, em uma dança embriagada.
A cada sequência rítmica o chão estremecia sob um "HEY" gritado por todos que assistiam magnificados aquela apresentação rara, e por saltos dos que dançavam e remexiam até as almas, levados pelo sabor inebriante da música.
O frio não mais se sentia, e podia se ver a chama da fogueira central crepitar alto demais, até atingir a lua, em uma espiral incandescente e admirável. Algumas ciganas contribuíam para o espetáculo jogando pós de magia dentro da fogueira, causando todo tipo de pirotecnia colorida, variando do magenta ao verde-florescente, levando sorrisos de surpresa e palmas ao turbilhão festivo.
Acima de esquentar, animar e fazer as pessoas sorrirem, as chamas, também, criavam vida, davam movimentos e dança as sombras das pessoas e dos objetos, e quem olhasse de cima de alguma laje, veria mais sombras do que pessoas, dançando mais do que elas, devido ao crepitar irregular da poderosa fogueira.

Entre toda essa multidão de gritos, saltos e animação, se estendia falho um homem carregado até aqui pela bebida. Em seu estranho caminhar ele parecia imitar um palhaço manco e um corcunda de braços tortos. Não aguentava mais erguer a cabeça, pois o mundo girava e demônios brincavam espetando-lhe as idéias. Tudo que ele podia fazer era olhar fixamente para as pernas das pessoas e para as sombras que brincavam no chão.
Se arrastou lentamente levado por passadas semi-ritimadas até um banco no meio da festa, e se sentou cabisbaixo, em um lugar deveras privilegiado para assistir a apresentação, mas agora desocupado, pois de pé podia-se sentir melhor a emoção da música e dar vazão aos desejos da alma e da carne.
Olhando sem se mover para as pernas, ele foi lentamente abaixando a cabeça e fechando os olhos, mas não poderia adormecer. Observou as sombras brincarem e viu como elas se mexiam de forma leviana demais para coisas sem vida. Semi-cerrou os olhos e viu que as sombras se distendiam e se aumentavam, se alargavam e se insinuavam em membros inexistentes. Julgou ser efeito da bebida fermentada e abriu os olhos o máximo que pode, sacudindo de muito leve o crânio. Mas as sombras continuavam a aumentar e a mudar de forma, excessivamente.
Após muito olhar para o chão, erguera um pouco a cabeça, para olhar as pessoas, e voltara os olhares para o chão de pedras batidas, podendo, assim, observar que as sombras não se mexiam de acordo com suas donas.
Viu pares de sombra se beijando, outros dançando, outros tocando flauta, castanhola, e viu umas com tamborins. Ele ouviu risinhos vindo das sombras no chão, e vozes falando dentro de sua mente acima do barulho do mar de gente. Ouviu vozes másculas e ouviu vozes delicadamente femininas, ouviu vocês maliciosamente femininas.
Algo ergueu sua cabeça contragosto até o muro que se estendia atrás da multidão, depois dos músicos e além da outra multidão, e viu mais sombras desobidientes dançarem e brincarem nas pedras empilhadas. A gravidade puxou pesadamente com suas mãos graciosas sua cabeça para o chão, e vômito viajou para fora de sua boca e nariz.
As sombras riram dele.
As sombras falaram com ele.
Falaram para ele olhar.
Ele olhou.
Fitou os músicos até achar a cigana mais linda dentre as mais perversas. Sua pele, mais clara que a de um carvalho e mais delicada do que uma cereja azul. Seu sorriso, mais cheio de malícia do que mil demônios, e mais estonteante do que a primeira flor da primavera. Seus olhos mais negros do que o céu nu atrás da lua. Seus cabelos mais castanhos e macios do que o leve toque da luz crepuscular.
As sombras lhe falaram de novo.
Ele as ouviu mais uma vez.
Se levantou, sob as ordens de suas obscuras amigas, e cambaleou sem razão ou consciência até o vão central do qual emanava a música. Entrou na roda de dança sob gritos e insultos pejorativos, gozações e piadas, e dançou. Ciganas brincaram com ele, bardos chutaram seus fundilhos e lhe arremesaram frutas, rindo, escandalosamente.
Ele, sem se importar com nada, se jogou e nadou até perto da desejada cigana, tomou a nos braços e desembanhou seu punhal, sem que notassem.
Ela o beijou, o burburinho aumentou.
E, sem que ela tirasse o sorriso do rosto, o curto punhal entrou na sua jugular sem tirar-lhe sangue instantaneamente, depois um rápido jorro e uma cachoeira.
Caíram juntos no meio da multidão, o sangue os abraçou, todos gritaram e a música cessou.
Em menos de meio minuto, só se ouviam os gritos e o desespero.
Antes de fechar os olhos para a eternidade que a bebida o levara, ele não podia ouvir nada disso, não ouvia sequer os próprios pensamentos.
Apenas olhava para a parede, via as sombras ainda dançarem.

Só podia ouvir a elas, rindo.

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